[QUADRINHOS] The Multiversity #1: A Declaração de Amor de Grant Morrison ao Multiverso DC

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Mais de 7 anos depois de anunciar seu mais ambicioso projeto pra DC Comics, chegou nesta quarta-feira nas comic shops dos Estados Unidos The Multiversity #1, o épico cósmico de Grant Morrison que explorará diversas Terras paralelas do Multiverso DC conforme elas lidam com uma ameaça à existência de toda a “Multiversidade.”

Eu já disse algumas vezes durante este ano para alguns amigos meus, e provavelmente aqui no NGF em algum momento, que 2014 definitivamente é o ano do Multiverso nos quadrinhos. Vale citar alguns exemplos:

Antes de Multiversity, já tivemos na Marvel Comics a ameaça das Incursões, nas séries Vingadores e Novos Vingadores, escritas por Jonathan Hickman, que desde o início da fase do autor nos dois títulos no final de 2012 vem jogando uma Terra paralela contra outra, num grande arco de histórias que promete encerrar-se em abril de 2015.

Já a IDW começou a publicar em junho o crossover Super Secret Crisis War (leia a resenha da primeira edição aqui), que vem reunindo personagens de diversos universos do Cartoon Network contra uma liga formada por vilões de mundos paralelos.

E este ano ainda começará na Marvel a saga Spider-Verse, que reunirá todas as versões alternativas do Homem-Aranha contra uma ameaça em comum.

Assim, para coroar o “ano do multiverso” nos quadrinhos, ninguém melhor do que Grant Morrison, um confesso apaixonado pelo conceito, que ele explorou pela última vez, em larga escala, na saga Crise Final, quando todo Multiverso DC esteve, literalmente, à beira do abismo, e foi preciso a reunião de heróis de várias Terras paralelas pra deter a ameaça da vez: Mandrakk, o Monitor Vampiro.

A "Multiversidade" versus Mandrakk em Crise Final, de 2009.

A “Multiversidade” versus Mandrakk em Crise Final, de 2009.

Desde então o Multiverso DC foi modestamente abordado em histórias menores, especialmente na série mensal Terra 2, que se passa em um destes universos paralelos; e na saga Vilania Eterna (atualmente sendo publicada no Brasil pela Panini Comics), onde o Sindicato do Crime – uma “Liga da Justiça do Mal” vinda da Terra-3 – assume o lugar da Liga da Justiça da Terra Zero – o universo DC dos Novos 52 – quando ela é dada como morta (a saga é mais do que isto, mas não tive paciência e tempo pra ler ainda, e ela não tem tanta importância pra Multiversity). Enfim, nada muito significativo. Mas isto promete mudar em 2015, quando a saga Crise nas Infinitas Terras – a primeira grande saga da DC envolvendo todo o Multiverso – completará 30 anos, data que a DC dificilmente deixará passar em branco.

Dito isto, não é mero acaso que Multiversity começou a sair em agosto. A série terá 9 edições, e se tudo correr como o planejado, termina em abril, mesmo mês em que as séries semanais The New 52 Futures End e Earth 2: Word’s End terminarão, iniciando o que promete ser o evento DC de 2015, pois ambas estão insinuando um vindouro confronto entre a Terra Zero e a Terra-2. Mera coincidência? Não é o que parece.

Mas deixemos as especulações para uma outra hora, e falemos de The Multiversity #1.

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Toda a edição funciona como uma rima temática da primeira edição de Crise Final. Morrison começa Multiversity partindo do micro e progredindo para o macro conforme a história avança dos parasitas de piolhos na cabeça de uma mulher para o que podemos classificar como os parasitas do Multiverso: os misteriosos e demoníacos membros do Gentry.

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Porém, antes de falar da ameaça da vez ao Multiverso, é preciso falar sobre o protagonista da primeira metade da história: Nix Uotan.

the-multiversity-1-p4Visto pela última vez na conclusão de Crise Final, Uotan é o último remanescente da raça de entidades cósmicas conhecida como Monitores, que até a saga em questão eram seres designados, cada qual, a observar a vida em cada um dos 52 universos que compõem o Multiverso. No final da história de 2009, Uotan escolheu reassumir a forma de seu avatar humano, e viver na Terra Primordial, que no Multiverso DC é o correspondente ao nosso mundo, um mundo sem super-heróis ou qualquer ser com poderes super-humanos.

Uotan recebe um pedido de socorro da Terra-7, que chega até ele sob a forma de uma história em quadrinhos, que, segundo Morrison, será um dos pontos de ligações e um meio de comunicação entre os universos que serão apresentados em cada uma das edições relativamente independentes que irão compôr Multiversity.

É na Terra-7 que Uotan tem seu primeiro e traumático contato com os membros do Gentry, que deixaram o mundo em questão “fora de sintonia,” zoando completamente as leis da física locais, e matando todos os seus super-heróis:

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Cabe aqui um parêntese sobre o significado de Gentry: é uma palavra de origem inglesa, derivada do francês genterie, que significa “gentil”, mas que entre a alta e baixa Idade Média era usada para referir-se a uma categoria mais baixa da aristocracia inglesa, cujo principal privilégio era possuir terras. Conhecendo Morrison, é claro que o nome tem múltiplos significados, que se tornarão mais claros nas edições seguintes, conforme descobrirmos mais sobre a natureza dos Gentry.

Chegando lá, Nix encontra Thunderer, o único sobrevivente da chacina perpetrada pelos Gentry, que pode ser descrito como um Thor aborígene. Logo Nix se vê obrigado a assumir o lugar de Thunderer como refém dos Gentry, o que dá ao herói uma chance de sobreviver e convocar ajuda de super-heróis de outros universos para resgatarem o Último Monitor das garras dessa galerinha do mau aí debaixo:

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Da metade pra frente a história muda o foco para o Superman da Terra-23, Calvin Ellis, também conhecido como Presidente Superman – ou “o que aconteceria se Barack Obama fosse secretamente o Superman de uma Terra paralela?” – visto pela última vez em Action Comics #9 (da qual falei um bocado aquiaqui, e que foi publicada no Brasil em Superman #9, pela Panini Comics).

Acompanhamos o recrutamento do herói através de uma abdução feita a partir de uma máquina bizarra em forma de cubo conhecida pelo simpático e sugestivo (?!) nome de Matriz Sinfônica de Transmatéria, criada pelo Lex Luthor da Terra-23 durante uma viagem muito louca pelo mundo das drogas (ou seja: se vocês quiserem construir uma máquina pra viajar pra outro universo, usem drogas, crianças! 😉 ).

Isto nos leva à Casa dos Heróis, que é tanto o título deste primeiro capítulo de Multiversity (revelado apenas no meio da edição), como um ponto central do Multiverso, que na verdade é (pasmem aqueles que entenderão a referência a seguir): o satélite sucateado do primeeeeeiro Monitor de Crise nas Infinitas Terras, caras!!!

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Segundos depois de um chilique de fanboy…

Ok, já me recompus… Onde eu estava mesmo? Ah sim! Na Casa dos Heróis o Superman-23 (vou chamá-lo assim de agora em diante pra facilitar minha vida) é recebido pelo Roger Rab… digo, o Capitão Cenoura, que é um sujeito maneiro ao ponto de explicar o que está acontecendo, onde ele está, e como ele foi parar ali. Enfim, uma aulinha básica sobre como funciona o recrutamento pelo qual vários campeões do Multiverso passaram até terminarem naquele lugar.

Depois da rápida conversa entre os dois, vem mais uma daquelas páginas duplas cheias de referências e easter eggs pra fazer a alegria de quem adora dissecar os trabalhos do Morrison, algo que não farei aqui na mesma proporção que diversos sites estrangeiros já estão fazendo. Vou dizer apenas que a cena remete a outra bastante parecida de Crise nas Infinitas Terras, com centenas de heróis reunidos no salão central do satélite do Monitor, com a diferença de que aqui vemos, se muito, uns vinte:

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Pela página acima, deu pra notar que quem assumiu o papel do Monitor como convocador dos heróis foi Thunderer, que explica rapidamente a situação, e é complementado pela entrada em cena de outra velha conhecida da Crise original: a Precursora, que já foi arauto do Monitor, capaz de dividir seu espírito em várias partes, e enviá-las para vários universos alternativos. Aqui ela é vista sob a forma de um holograma que representa uma parte de sua essência que foi armazenada no sistema operacional do satélite (simples assim 😉 ).

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Enfim, acho que neste ponto já deu pra notar que o primeiro capítulo de Multiversity é lotado de referências às demais Crises do Multiverso. Mas, para quem estiver disposto a embarcar nesta viagem sem conhecê-las, eu diria que ela funciona relativamente bem para “não-iniciados.” Parte disto se deve ao fato de toda a história ser estrelada por heróis pouco conhecidos do grande público. O Superman-23, por exemplo, age na trama como qualquer leitor novato que começa a ler Multiversity e sente-se meio desorientado no meio de todo blábláblá cósmico, transcendental e musical envolvendo o Multiverso DC. Mas garanto que no final a coisa toda acaba revelando um quadro fascinante e criativo como poucas vezes se viu em quadrinhos recentes de super-heróis.

E depois de mais uma aulinha do Flash nerd virjão da Terra-36 (ou possivelmente gay, a julgar pela conversa rápida que ele tem com o Lanterna Verde de seu universo), que explica pro Superman-23 como é que funciona essa parada de passar informação de um universo pra outro através de histórias em quadrinhos, os heróis partem na Ultima Thule – vulgo “Submarino Amarelo” – um veículo composto de música sólida (!) que na verdade é um grande instrumento musical capaz de vibrar em diferentes frequências, e com isto viajar pelo Multiverso navegando pela Sangria (que por sua vez é o “sistema circulatório” e rede de comunicação entre os universos do Multiverso), e dela para o próximo mundo em apuros: a Terra-8 (como eu amo esses conceitos loucos dos quadrinhos e que não estão nem aí pras leis chatas da física ❤ ).

Navegando pela Multiverso em ritmo de jazz.

Navegando pela Multiverso em ritmo de jazz.

Antes disto o Superman-23 aprende a, literalmente, tocar Ultima como uma arpa, que é como as coisas funcionam no Multiverso DC: cada universo vibra numa frequência distinta, e para viajar de um pro outro é só mudar a frequência vibratória. Aliás, adoro a parte em que ele diz que está improvisando um jazz, seguindo uma música que ouviu em sua mente, para alinhar Ultima com o universo da Terra-7 (tá, ele acaba “errando uma nota,” e vai parar na Terra-8, mas o que vale é a intenção, certo? ;P ).

Lá chegando, o que encontram são os análogos da DC para o Quarteto Fantástico e os Vingadores (incluindo um “Hulk” azul bebezão que é a cara do Jack Kirby! XD), rola uma batalha rápida entre eles, o Lord Havok – vulgo Doutor Destino genérico – choca um ovo sinistrão, e dele nasce Nix Uotan, após “sofrer por uma eternidade após outra” nas mãos dos Gentry, e a Casa dos Heróis fica prestes a cair (sim, este foi um trocadilho que não deu muito certo…). FIM (por enquanto).

Daí você deve estar se perguntando agora (ou deveria): por que o Rodrigo, que venera tanto o Grant Morrison, escreveu um texto tão zoado sobre Multiversity, um projeto esperado há tantos anos? E eu respondo o seguinte: porque é exatamente isto que o Morrison quer: não ser levado totalmente a sério!

Deixa eu explicar um coisinha bem básica sobre quadrinhos de super-heróis que pode ser chocante pra alguns de vocês: eles não foram feitos pra serem levados totalmente a sério! E mais do que a maioria dos autores atuais do gênero, Grant Morrison sabe disto, e resolveu escancarar este aspecto logo nas primeiras páginas. Ou vocês acham que ele queria o que ao fazer Nix Uotan, um ser com poderes de um deus, ter como parceiro Stubbs, um macaco de pelúcia (!) que, de uma hora pra outra, se transforma num macaco falante “de verdade”?!

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E o que dizer do Capitão Cenoura, que em dado momento recebe uma pancada que o deixa achatado feito uma panqueca, pra logo em seguida se recompor e soltar a frase da semana:

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Isto tudo é uma maneira do Morrison dizer aos leitores pra sentarem confortavelmente em suas poltronas, camas ou seja lá onde estiverem lendo seus quadrinhos, e se divertirem com as ideias malucas, divertidas e cosmicamente épicas dele.

Além da diversão proporcionada, há os contorcionismos metalinguísticos que já viraram marca registrada dos trabalhos do autor. “Ah, mas isto já deixou de ser novidade faz tempo!” – grita um Capitão Óbvio lá no fundo da sala. A quem eu digo: AHAM! Mas nos quadrinhos de super-heróis poucos autores usaram o recurso tão bem, e de maneiras tão criativas e empolgantes quanto Morrison.

Em Multiversity ele se mostra tão à vontade em lidar com este “truque narrativo” que se dá ao luxo de trabalhar com múltiplas camadas de metalinguagem logo nas primeiras páginas, quando mostra Nix dissecando uma história em quadrinhos que na verdade é a mesma que estamos lendo e na qual ele está naquele exato momento, e logo em seguida apresenta o rapaz dando uma folheada na Ultra Comics, que será o penúltimo capítulo de Multiversity. Ou seja: um flashforward dentro de uma sequência metalinguística dentro de outra! @___@ #inceptionfeelings

E não posso deixar de falar da continuidade que Morrison dá ao conceito que começou a desenvolver em Crise Final: o Multiverso DC como uma imensa e complexa sinfonia. Isto se evidencia especialmente quando o Superman-23 aparece conduzindo Ultima Thule ao tocar suas cordas, tirando dela uma música que emparelha a embarcação com outro universo. É uma visão bela e poética de uma superestrutura composta de vários universos que, segundo a nova organização proposta e mapeada por Morrison (veja abaixo), é tão elegante quanto a ideia de tudo ser, essencialmente, composto por música.

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Eu poderia citar aqui as dezenas de referências a outros trabalhos de Morrison para a DC (como os já citados ao longo do texto até aqui, assim como seu trabalho em Action Comics – do qual falei em detalhes nesta série de artigos); sobre o simbolismo e autorreferência da DC Comics que é um Flash nerd ser o cara que manja da comunicação entre os universos por intermédio dos quadrinhos; ou do grande amarramento que Multiversity promete fazer de todos os trabalhos que o autor fez pra editora desde Homem-Animal, mas isto seria apenas repetir o que muitos sites já estão fazendo: dissecar mais este trabalho de Morrison, algo que ele mesmo, conscientemente, cita no início da edição.

Parte da diversão de ler Multiversity é cada leitor escolher de que forma navegará pela história, definirá o ritmo da leitura, e quantas vezes revisitará cada quadrinho em busca de referências obscuras ao passado da DC.

Esta primeira edição já tornou-se a primeira parte de uma declaração de amor de Grant Morrison ao Multiverso DC. Por isto esta não podia ser apenas uma review qualquer, ou uma série de anotações analíticas sobre todas as referências presentes na trama, mas minha declaração de amor ao trabalho de Morrison dentro deste universo de ficção e fantasia que já é tão dele quanto foi de outros criadores. Durante as décadas em que Morrison explorou o Multiverso DC, ele traçou conexões entre várias partes dele com as quais trabalhou, formando uma complexa árvore narrativa que nasceu com sua fase na série do Homem-Animal, e continuou crescendo, e se alastrando por infinitos universos paralelos, até chegar a Multiversity. Vejamos que forma ela terá ao final da história… Até lá, uma boa jornada pelo Multiverso a todos vocês! A minha já está sendo inesquecível. 🙂

The Multiversity #1
Roteiro de Grant Morrison, desenhos de Ivan Reis, arte-final de Joe Prado, cores de Nei Ruffino, letras de Todd Klein

Nota: 10 (ÓBVIO!!)

Capas variantes da edição:

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