[QUADRINHOS] “O Despertar – Volumes 1 e 2” de Scott Snyder e Sean Murphy (resenha)

Este mês a Panini Comics publicou o segundo e último volume da minissérie O Despertar, amálgama de ficção científica e terror concebido pela dupla Scott Snyder e Sean Murphy. Em 2014 eu li a versão original da história, que foi publicada na íntegra no Brasil, portanto a resenha que fiz na época vale pra versão brasileira.

Segue abaixo a republicação do texto original, com algumas poucas adaptações:

the-wake-capas-1-5-sean-murphy

Tente imaginar uma mistura dos filmes O Segredo do Abismo, O Enigma de Outro Mundo, Alien – O Oitavo Passageiro e Mad Max 2 com o livro Nas Montanhas da Loucura, e você terá uma boa noção do que encontrará em O Despertar.

A minissérie original, que foi publicada no Brasil em 2 volumes, foi intencionalmente dividida em 2 partes de 5 edições cada. A 1ª parte é um terror claustrofóbico, enquanto a 2ª é um thriller de ação pós-apocalíptico. Por incrível que pareça, a Snyder e Murphy deran conta de conciliar gêneros que, à primeira vista, são tão contrastantes, especialmente por ambas as partes apresentarem elementos de ficção científica, que seria o gênero no qual a história como um todo se encaixaria melhor. Descontadas as diferenças de proporção e pretensão das histórias, dá pra dizer que as duas partes de O Despertar se assemelham à relação entre os filmes “Alien” de Ridley Scott e “Aliens – O Resgate” de James Cameron.

Um detalhe que já chama atenção logo nas primeiras páginas é O Despertar começar com um flashforward da parte 2, para só então concentrar-se na história de Lee Archer, protagonista da parte 1. Nela acompanhamos a integração de Lee a uma equipe de cientistas formada para estudar uma criatura submarina humanoide, apelidada de sereia, capturada e mantida em cativeiro num imenso laboratório subaquático militar. Olha só que belezinha:

the-wake-sereia-primeiro-contato

Logo descobrimos que Lee não foi convidada à toa para integrar a equipe, pois, quando jovem, ela e seu pai tiveram uma experiência ao mesmo tempo traumática e iluminadora com as tais sereias. Isto a motivou a escolher a profissão de cetóloga (ramo da zoologia especializado no estudo de mamíferos marinhos).

the-wake-sereia-dr-marin-carl-sagan-like

A dinâmica do grupo de personagens da parte 1 é bem montada. Enquanto Lee é fascinada pela vida marinha, o Dr. Marin (que é a cara do Carl Sagan! – veja à esquerda) oferece uma visão mais folclórica e mitológica de tudo que acontece ao redor, enquanto Meeks é um inescrupuloso caçador de animais marinhos, e a Capitã Mackelway faz o papel da mulher durona (tão comum nos filmes de James Cameron, que têm muita influência em O Despertar), e está lá pra orientá-los dentro da base militar submarina, que ela conhece como a palma da mãos. Resumindo: os dois primeiros são o cérebro da equipe, e os dois últimos a força bruta.

the-wake-nightmare-mist

“Ondas de uma milha de altura. Águas cheias de névoas de pesadelo. Cheias de demônios.” – Snyder lovecraftiando

Aliás, uma ótima sacada narrativa de Snyder foi intercalar os flashbacks de Lee com fragmentos de contatos da humanidade com as tais sereias no passado, presente e futuro (o flashforward previamente citado, que inicia O Despertar, e oferece um vislumbre da 2ª parte da trama). Assim, ele contrapõe a história de sua protagonista à da humanidade inteira, conseguindo, desta forma, dar uma noção melhor da enormidade da história por trás das temíveis criaturas abissais. A escala de tempo é épica: começa 200 anos no futuro, volta para o presente, e depois pra 100.000 anos no passado, em seguida pra 5,1 milhões de anos atrás, avança para 3,8 milhões de anos atrás em Marte (!!), e retorna para 200 anos no futuro. Tudo isto “denuncia” quão inspirada em Lovecraft é a história concebida por Snyder, que usa o fato das sereias virem das profundezas do oceano para traçar um paralelo entre a natureza delas e a dos maiores e mais profundos mistérios da humanidade e do universo.

O autor também soube fazer uma mistura bem coesa de mitos antigos com ciência moderna, para construir uma nova mitologia relacionando as sereias e os vários dilúvios registrados por várias culturas do planeta. E ainda teve o cuidado de sustentar tudo isto com embasamento científico, usando conceitos como gases “redesenhados” para ajudar seres humanos a resistirem à pressão atmosférica submarina; a teoria sobre os “macacos aquáticos” citada no capítulo 2; e a da “baleia 52” mencionada no 3.

Tudo isto ganha contornos mais impressionantes graças à arte de Sean Murphy, que soube captar muito bem a atmosfera claustrofóbica, silenciosa e solitária do fundo do oceano na primeira metade da história, e traduzir visualmente alucinações e sonhos enigmáticos e assombrosos. Tais trechos remetem a filmes como Submersos (Below, 2002) e O Enigma do Horizonte (Event Horizon, 1997), que também lidaram com personagens sendo mental e psicologicamente afetados por ambientes fechados em atmosferas diferentes daquela com que estão acostumados (ou “peixes fora d’água”, pra usarmos uma expressão mais condizente com The Wake).

the-wake-solidao-subaquatica

Acho que uma boa forma de descrever o início da parte 2 é: Waterworld feito do jeito certo. Nela somos apresentados a um mundo pós-apocalíptico cuja maior parte da superfície foi tomada pelos oceanos, e a humanidade seguiu em frente e encontrou uma forma de reconstruir parte da civilização com os poucos recursos que restaram.

A arte de Murphy mostrou-se tão essencial na 2ª parte quanto foi na 1ª. Pra começar, a panorâmica que ele desenhou como página de abertura da parte 2 consegue demonstrar num só quadro parte do funcionamento e da arquitetura de uma cidade humana readaptada para um mundo tomado pelas águas. Além disto, os detalhes mínimos dos cenários e vestuários criados por ele dão conta de sugerir toda uma nova cultura, construída a partir de sucatas e destroços de um mundo que não existe mais.

the-wake-cidade-humana-pos-diluvio

É na parte 2 que Snyder e Murphy “piram” nos conceitos sci-fi. Vemos orcas, baleias e golfinhos sendo usados como meio de transporte e ciborgues armados para combater as sereias, no que seria o correspondente aquático aos automóveis e motos agressivamente turbinados da série “Mad Max.” O design de Murphy é ótimo, como de costume. Mas talvez a melhor piração de todas é o cadáver de uma sereia gigante convertido num mecha subaquático tecnorgânico pilotado por piratas com próteses cibernéticas (!!). Cyperpunk puro e da melhor qualidade!

the-wake-sereia-mecha

Quão foda é isto?!

E só Sean Murphy mesmo pra fazer uma cena de ação envolvendo um golfinho ficar excelente:

the-wake-sereia-golfinho-snowboard

Na parte 2, Snyder e Murphy criaram uma extrapolação do cenário que a humanidade logo pode encarar caso uma consciência mais ecológica não seja desenvolvida por ela. Mas tal mensagem é transmitida de forma orgânica dentro da história, mais por fatos narrados ou deixados subentendidos do que por discursos “ecochatos” e idealistas.

Leeward, protagonista da 2ª parte, é uma heroína determinada e destemida, com espírito aventureiro, que quer explorar e entender o mundo, a fim de salvá-lo de um futuro ainda pior que a realidade onde vive. Não é explicitado pelo texto de Snyder, que prefere acreditar na inteligência de seus leitores, mas fica subentendido que ela é bisneta de Lee Archer.

the-wake-sereia-leeward

Leeward

the-wake-governadora-vivienne

Governadora Vivienne

Um detalhe que expõe a inteligência de Matt Hollingsworth, responsável pelas cores da minissérie, é usá-las para destacar ainda mais Leeward do meio onde vive. Suas roupas e cabelos são verde-água, o que salienta sua ligação maior com o oceano, enquanto a maioria dos demais personagens usam roupas cor de terra, que reforçam sua ligação “nostálgica” com o “velho mundo”, ou o desejo de restaurá-lo à forma como era antes do Grande Dilúvio, quando a água e as sereias dominaram a superfície do planeta.

Um outro uso inteligente das cores pode ser encontrado na figura da Governadora Vivienne, cujas roupas azuis claras reforçam sua ligação com o gelo, principal elemento que compõe a Torre que marca o centro da maior reserva de água potável do que sobrou dos Estados Unidos, que está sob seu controle, além de destacar ainda mais a frieza de seu comportamento.

o despertar scott snyder sean murphy panini comicso despertar scott snyder sean murphy panini comics 2Talvez o único ponto de The Wake que não tenha me agradado totalmente seja o final. Achei a conclusão um tanto anti-climática. As resoluções dos mistérios propostos por Snyder são meio corridas, pra não dizer, em alguns pontos, confusas ou vagas demais. O destino de alguns personagens me fez lembrar do filme Cocoon (1985). Na verdade, todo o mistério envolvendo as sereias e sua relação com a história e origens da humanidade lembra uma versão mais adulta daquele filme da década de ’80 sobre velhinhos que descobrem uma fonte da vida eterna alienígena no fundo de uma piscina. Se a intenção do autor era deixar o final em aberto, conseguiu. Se houver uma continuação, pode ser que ele explore as pontas soltas que deixou. Mas não é nada que não podia ser resolvido com um pouco mais de páginas, e um tom mais épico, como o usado no restante da minissérie.

Apesar de soarem um tanto confusas e atropeladas, as revelações finais são inteligentes, por deixarem aberta a interpretação a natureza das mesmas, que podem ser vistas como um sonho, uma experiência pós-morte ou um contato com alienígenas. Todas se encaixam bem dentro da mitologia construída por Snyder durante as 10 edições. Vale o investimento!

nota-4

Um comentário sobre “[QUADRINHOS] “O Despertar – Volumes 1 e 2” de Scott Snyder e Sean Murphy (resenha)

  1. Concordo com suas palavras! Não consegui analizar a historia com a Riquesa de detalhes que você mencionou, pois so agora tenho me envolvido com quadrinhos mais estruturados. Mais para mim tbm ficou situações sem explicação, como eles conseguiram montar aquele sereio? Não houve um prologo explicando o que aconteceu com a populacao, eles estão em Marte????
    Vou ler a historia novamente com mais calma para tirar duvidas.

Deixe um comentário